CCCD - Cineclube do Centro Cultural da Diversidade


de 13.10.2021 a 30.11.2022
Centro Cultural da Diversidade

Depois do período de isolamento decorrente da pandemia da covid-19, o DEPOIS DO FIM DA ARTE começou a organizar um cineclube no Centro Cultural da Diversidade. Os filmes exibidos foram escolhidos por apresentarem experimentos formais radicais que dessem forma a narrativas alternativas àquelas do cinema mainstream. A partir dos interesses dos pesquisadores do grupo, um texto introdutório e um comentário audio visual foram realizados e apresentados antes da projeção. 

Participantes: Alex Avelino, Anna Talebi, Dora Longo Bahia, Felipe Salem, Fernanda Pujol, Gabriel Ussami, Guilherme Ferreira, Lara Ovídio, Leila Zelic, Mariana Metri, Maya Guizzo, Murillu, Nina Lins, Ottavia Delfanti, Pedro Andrada, Thais Suguiyama e Victor Maia.


13.10.2021
NASCIDAS EM CHAMAS (1983)[Born in Flames]
de Lizzie Borden
com Honey, Adele Bertei, Jean Satterfield, Florynce Kennedy, Becky Johnston, Kathryn Bigelow.
79 minutos




Depois de um longo confinamento, o Depois do Fim da Arte vai retomar o Cineclube, agora no Teatro Décio Almeida Prado, no Centro Cultural da Diversidade. Para começar nossa programação, escolhemos o primeiro longa da cineasta norte-americana Lizzie Borden. O pseudo-documentário Nascidas em Chamas (1983) é uma espécie de fantasia política, ambientada em um futuro indeterminado, bem parecido com o presente em que o filme está sendo feito. Dez anos depois de uma revolução socialista pacífica, nos Estados Unidos, preconceitos de gênero, classe e raça levam um grupo de mulheres de Nova York a planejar uma revolução dentro da revolução. Enquanto o sarcasmo malicioso da grande mídia ainda se baseia em um paradigma patriarcal, duas estações de rádio underground concorrentes – as rádios Phoenix e Ragazza – estimulam as ouvintes a levantarem-se contra a discriminação e atuarem para mudar o sistema.

Nascidas em Chamas retrata as diferenças políticas entre ativistas feministas em depoimentos improvisados mesclados com cenas roteirizadas, evitando solucionar os conflitos com uma “moral da história”. Movimentos sociais divergentes são apresentados sem que suas discordâncias sejam achatadas, ignoradas ou resolvidas. Em vez de fornecer uma narrativa simples, defendendo uma posição unificada e clara, Borden coloca uma bomba com o pavio aceso no colo dos espectadores. Ao demonstrar que a violência motivada por preconceitos de raça, classe e gênero continua igual ao longo do tempo, a cineasta produz uma teoria do futuro como uma repetição do passado ou mesmo uma mumificação do presente. O Estado “revolucionário” de Borden não apenas continua a organizar as populações, as instituições e as formas de conhecimento, perpetuando preconceitos e abusos, como também determina o futuro, gerenciando-o, contorcendo-o e erradicando-o, antes mesmo que ele aconteça.

Nascidas em Chamas foi produzido em 16mm durante cinco anos (entre 1978 e 1983), inspirado na leitura de teóricas marxistas como Rosa Luxemburg e Alexandra Kollontai. Sem um roteiro original, já que, segundo Borden, ela “não queria colocar palavras na boca de mulheres negras, especialmente de lendas como Flo Kennedy [advogada, feminista radical, defensora dos direitos civis e ativista]”, o filme foi um longo processo colaborativo, em que técnicas do documentário foram exploradas para a construção de um mundo fictício não tão distante assim. Cada take custou cerca de US$200, conseguidos com a locação da ilha de edição da cineasta, durante a noite, por US$25. Quando conseguia reunir outros US$200, Borden recomeçava a filmar e ia, ela mesmo, adicionando os novos takes ao corte em andamento.

Em meados dos anos 1960, Linda Elizabeth Borden, então com onze anos, adotou o nome Lizzie Borden como uma forma de “rebelar-se” contra seus pais. A Lizzie Borden “original” nasceu em 1860 e faleceu em 1927 em Massachusetts, EUA. Ela ficou famosa por ter sido julgada pelo assassinato de seu pai e de sua madrasta, a machadadas. Apesar de ter sido absolvida, a Lizzie Borden “original” permaneceu a principal suspeita do crime durante toda a sua vida, tornando-se uma figura folclórica e inspirando até mesmo cantigas populares, como esta abaixo:

“Lizzie Borden pegou um machado
E deu em seu pai quarenta golpes,
Quando ela viu o que tinha feito,
Ela deu em sua mãe quarenta e um.

Andrew Borden agora está morto,
Lizzie o acertou na cabeça.
Lá no céu ele vai cantar,
E na forca ela vai balançar”.

Os versos acima influenciaram a Lizzie Borden "cineasta" a adotar seu novo nome. Lizzie Borden graduou-se em artes visuais na Wellesley College, Massachusetts. Atualmente é professora na Columbia College Hollywood, faz pilotos para a Fox, Skype etc e escreve roteiros para filmes e peças de teatro. Antes de filmar, dirigir e editar Nascidas em chamas, ela escrevia sobre arte para a revista Artforum e pintava.




27.10.2021
AS PEQUENAS MARGARIDAS (1966)
[Sedmikrásky]
de Vera Chytilová
com Ivana Karbanová e Jitka Cerhová
74 minutos




Depois do Fim da Arte apresenta, em sua segunda exibição do Cineclube no Centro Cultural da Diversidade, o longa-metragem As Pequenas Margaridas (1966), de Vera Chytilová. “Se tudo vai mal no mundo, também seremos más”, afirmam as "pequenas margaridas", ou melhor, as Marias – como são creditadas as protagonistas – no início do que virá a ser sua própria jornada de destruição. Entre o deboche e a caricatura, afinal inocentes na aparência, porém “depravadas”, as duas bonecas são uma alegoria da juventude perdida, outrora promessa de futuro – falsa ilusão do bem-estar econômico promovido pela industrialização. Sem alternativa, ao longo do filme, elas rompem com códigos de comportamento, alheias à cobrança pela produtividade, pela felicidade, ou pelo amor.

Ao desarticular imagem e som, fazer uso de rimas visuais sobrepostas de ruídos, bem como da experimentação cromática, por meio de filtros saturados e interferências na película, a diretora borra as fronteiras entre o real e o onírico. O ritmo fragmentado da montagem, as colagens e a justaposição de planos detalhes contribuem para a atmosfera caótica, numa alusão à anarquia narrativa e estética. Chytilová critica um mundo velho, fadado ao acúmulo, ao consumo. Para ela, aqui, não há salvação.

Pela sincronia de múltiplos trejeitos – teatrais, literários, musicais, pictóricos –,  o movimento cinematográfico que viria a ser chamado de “nova onda tcheca” buscou libertar-se da opressão do regime comunista instaurado em 1948. Nos filmes, a dissonância dos meios, herdada pelas vanguardas do Surrealismo e do Dadaísmo, foi o gatilho para um enfrentamento ao regime, que até a década de 1990, na dissolução da Tchecoslováquia, manteve muitos títulos na obscuridade. Apesar de, em 1966, ter recebido o prêmio Trilobit de Melhor Filme da União Tcheca de Cinema e Televisão, As Pequenas Margaridas – o mais radical dos filmes da diretora tcheca – foi acusado de “indecente e pessimista”, banido das salas de cinema e censurado pelo governo da época, então parte da União Soviética. Chytilová ficou sem trabalho e impedida de filmar por sete anos.

Vera Chytilová estudou filosofia e arquitetura antes de formar-se em cinema na Akademie múzických umění – AMU, em Praga. Mesmo sob a alcunha de "feminista” – comumente atribuída a ela –, Chytilová não se comprometeu com posicionamentos unívocos à respeito das mulheres no âmbito das transformações do governo comunista. Em sua obra, a modernização que as insere no rígido sistema de trabalho é contrastada às reminiscências do patriarcado que igualmente (e ainda) as delega à domesticação moral e domiciliar. A contradição da ideologia é, portanto, um pavio para o desprendimento estético ao qual Chytilová se propôs.




24.11.2021
DESEJO E OBSESSÃO (2001)[Trouble Every Day]
de Claire Denis
com Beatrice Dalle, Vincent Gallo, Tricia Vessey, Alex Descas.
110 minutos




Na terceira sessão do Cineclube no Centro Cultural da Diversidade, o Depois do Fim da Arte apresentará Desejo e obsessão (2001), de Claire Denis, dando continuidade à mostra de cineastas mulheres iniciada com Nascidas em chamas de Lizzie Borden. Em Desejo e Obsessão ­– cujo título original faz referência à música de Frank Zappa, Trouble every day, do álbum Freak Out! – Shane (Vincent Gallo) e June Brown (Tricia Vessey) são um casal estadunidense em lua-de-mel em Paris. Shane está em busca de Léo Semeneau (Alex Descas), cientista que fez experimentos sobre a libido humana em um laboratório na Guiana Francesa. Coré (Béatrice Dalle), esposa de Léo, sofre – assim como Shane – de uma doença que a leva a impulsos sexuais violentos, em parte canibais, em parte vampirescos. O encontro de Coré e Shane muda o percurso de todos à sua volta.

Não há uma linha narrativa clara em Desejo e Obsessão. A diretora fragmenta a história, dando pistas para a compreensão do enredo. Desejo e Obsessão é “cinema feito com a câmera”: planos fechados passeiam pela pele das personagens em uma atmosfera sensual, embalada pela trilha melancólica de Tindersticks. O filme éfruto de mais uma parceria de Denis com a diretora de fotografia Agnés Godard e a montadora Nelly Quettier, sendo considerado parte do New French Extremity. O termo foi cunhado pelo crítico James Quandt da revista Artforum, para classificar uma coleção de filmes transgressivos de diretores franceses feitos na virada do século XXI, que usam o terror para questionar convenções políticas, sociais ou cinematográficas.

Desejo e Obsessão pode ser lido como uma uma metáfora para a AIDS ou como uma releitura do mito da vagina dentata, castradora e faminta. Denis aborda a fixação do mundo ocidental com o monstruoso em conexão com o “feminino”, explorando os limites entre desejo e terror e a ambiguidade daquilo que é considerado abjeto. Como outras mulheres-monstros do cinema, Coré age radicalmente fora dos limites do comportamento esperado. A monstruosidade é levada ao extremo, rompendo os limites do aceitável: um comportamento "feminino" aberrante, descrito como depravado, monstruoso e abjeto, mas, ao mesmo tempo, perversamente atraente. Denis apresenta o ator Vincent Gallo – ídolo cult que ficou famoso por suas declarações homofóbicas e misóginas ­– como o personagem principal que tenta controlar seus impulsos assassinos, explicitando ainda mais a ambiguidade do atraente/abjeto (ver o também abjeto site de Gallo: https://www.vgmerchandise.com/store/pages.php?pageid=4).



Extremamente violento, Desejo e obsessão estreou fora da competição no 54º Festival Internacional de Cinema de Cannes, provocando vaias e desmaios. Ainda é o filme mais controverso de Claire Denis que, antes dele, era considerada uma diretora “discreta”, “contida” e “ sensível”. Nascida em 1948, na França, a cineasta foi criada nas colônias francesas do continente africano – entre Camarões, Senegal, Burkina Faso e Djibouti. Após abandonar o curso de economia, formando-se na escola de cinema IDEHEC, trabalhou como assistente de direção de Jacques Rivette, Costa-Gavras, Jim Jarmusch e Wim Wenders. Desde seu longa de estreia, Denis exibe uma obra semi-biográfica onde representa, em Chocolate (1988), por exemplo, a visão de uma menina e a vida dos brancos europeus em Camarões. Em seu segundo longa, Dane-se a morte (1990), ela inverte a narrativa: dois imigrantes negros, um de Benin e outro das Antilhas, tentam sobreviver ao submundo de Paris. Segundo a própria diretora, “estou mais interessada nos indivíduos e em como eles respondem a desafios ou a dificuldades, ou simplesmente uns aos outros. Tenho curiosidade pelas pessoas. O cinema deve se concentrar em existências ordinárias em situações e lugares eventualmente extraordinários. É isso o que me motiva de verdade”.




23.02.2022
A CONEXÃO (1961)[The Connection]
De Shirley Clarke
com Carl Lee, Warren Finnerty, William Redfield.
110 minutos




O Cineclube do Depois do Fim da Arte inicia o ano de projeções no Centro Cultural da Diversidade, com A conexão (1961), primeiro longa-metragem de Shirley Clarke. Adaptação da peça de teatro homônima escrita por Jack Gelber, o filme apresenta um grupo de viciados em heroína – que inclui um quarteto de músicos de jazz – à espera do traficante, em um loft decadente de Nova York.

No longa-metragem ­– que poderia ser considerado um documento fidedigno de parte da vida boêmia nova-iorquina dos anos 60 – o fotógrafo e o diretor (na peça de Gelber, o escritor e o produtor) se tornam personagens tão importantes quanto os viciados, ironizando concepções do cinema etnográfico e escancarando os problemas existentes na relação entre documentarista e documentado. Com interpretação da maior parte dos mesmos atores e músicos da peça de Gelber, o filme combina movimentos dinâmicos de câmera e diálogos beat com a instigante trilha sonora composta por Freddie Redd.

Shirley Clarke optou por manter no filme a constrição de um cenário teatral, mas combinou a câmera móvel da Nouvelle Vague francesa com uma coreografia giratória propiciada pela dança e pelo jazz, criando um filme emocionante e cinético. Clarke foi uma das fundadoras do New American Cinema Group em 1961, tendo sido a única mulher a assinar o manifesto publicado pelo grupo no mesmo ano. Sua participação na cena independente de Nova Iorque a levou a explorar um lado irônico do chamado cinema verité na sua versão da peça de Gelber.

No entanto, mesmo sabendo a natureza vanguardista de seu filme e da peça que o inspirou, Clarke não podia prever a natureza do furor que o filme iria causar. Embora Hollywood já tivesse retratado viciados em drogas antes, geralmente eles eram bons garotos que acabaram num contexto ruim e tiveram finais trágicos. A conexão, pelo contrário, mostrava uma visão crua e gráfica dos viciados em drogas. Ao abordar assuntos sociais controversos em um filme gravado em 20 dias e com orçamento relativamente modesto para a época (177 mil dólares), Clarke se recusou a assumir uma posição moralista quanto ao uso de drogas, questionando inclusive o seu lugar como diretora no processo de realização. Vinda de uma família abastada, ela teria dito em uma entrevista que não sabia nada sobre viciados, quando filmou A conexão. Sua identificação com eles teria sido, sobretudo, por ser uma mulher em uma sociedade predominantemente machista, ou seja, vivendo à margem da cultura em que estava inserida.

Apesar de ter sido um sucesso no Festival de Cannes e recebido elogios por parte da crítica, o longa-metragem foi duramente repreendido pela censura do Estado de Nova York. Considerado indecente por conter cenas do que poderia ser uma "revista pornográfica", por sugestão de homossexualidade e linguagem "obscena" (como o uso recorrente da palavra shit), o filme foi banido das salas de cinema, teve sessões fechadas por policiais e, por isso, uma recepção crítica negativa. Tal situação se acirrou ao ponto de Clarke, uma diretora mulher – responsável por grandes quantias de dinheiro, equipamentos e pessoas – num meio predominantemente masculino, enfrentar uma série de dificuldades para obter financiamento para novos projetos. Após uma batalha de dois anos, os produtores e a diretora finalmente venceram a luta no tribunal que alegou que, embora "vulgar", o filme não deveria ser considerado "obsceno". Apesar de ter sido uma vitória judicial importante, A conexão acabou fracassando nas bilheterias.

Shirley Clarke estudou na Universidade Johns Hopkins, na Bennington College e na Universidade da Carolina do Norte. Nesses lugares, teve aulas de dança moderna, introduzindo-se nos métodos de Martha Graham, Humphrey-Weidman e Hanya Holm. Iniciou sua carreira como dançarina e depois passou a fazer uso da câmera na realização de pequenos filmes, como Dance in the Sun, seu primeiro curta-metragem sobre dança, lançado em 1953. A seguir, estudou cinema na City College of New York, realizando outros curta-metragens sobre o tema. Em 1955, começou a frequentar o círculo de cineastas independentes de Nova Iorque, que contava com Andy Warhol, Maya Deren, Stan Brakhage, Jonas Mekas e Lionel Rogosin entre outros.




23.03.2022
BYE BYE BLONDIE (2012)[Bye Bye Blondie]
de Virginie Despentes
com Beatrice Dalle, Emmanuelle Béart, Soko.
97 minutos




Nesse mês, Depois do Fim da Arte exibirá no cineclube do Centro Cultural da Diversidade, Bye Bye Blondie, terceiro filme dirigido pela escritora e cineasta francesa Virginie Despentes. Autora de mais de quinze livros - incluindo Apocalypse bébé (2010), Teoria King Kong (2006) e a trilogia Vernon Subutex (2013), traduzida em mais de vinte idiomas - Despentes incorpora em suas narrativas cinematográficas a violência que ela própria viveu. De maneira crua, direta, aborda temas como estupro, masturbação, pornografia, prostituição, fealdade, sob o contexto do capitalismo, subvertendo o male gaze comumente identificado na produção cultural hegemônica.

A obra inaugural de Despentes, Baise-moi (2000), co-dirigido por  Coralie Trinh Thi, ao ser adaptada para o cinema, logo tornou-se o primeiro filme a ser proibido na França em vinte e oito anos. Tanto o longa-metragem como o livro são gráficos, por vezes exagerados, embora funcionem como um confronto brutal diante da forma como sexo e violência são regulados socialmente e definidos segundo gênero. Não tratam de mostrar como mulheres podem ser violentas e amorais como homens, mas sim questionam o que acontece quando pessoas que, normalmente, não têm poder decidem reclamá-lo à força. É sobre aquilo que “cabe ou não” às mulheres, explicitando a discrepância da aceitação de homens e mulheres como agentes de monstruosidades.

Menos polêmico, arriscado e violento que seu filme de estreia, Bye Bye Blondie é uma comédia dramática terna sobre o reencontro de duas mulheres que tentam reatar, décadas depois, a história de amor vivida na adolescência, enquanto ouviam punk rock. Frances (Emmanuelle Béart), uma famosa apresentadora de TV, encontra Gloria (Beatrice Dalle) logo após sua separação, propondo que fiquem juntas mais uma vez. Gloria, expulsa de casa pelo marido, sem ter o que perder, vende seus discos e parte para Paris. Enquanto Frances tem uma vida de luxo, rodeada pela alta sociedade, Gloria mantém a rebeldia da adolescência, o que acaba por ameaçar a ordem da vida da namorada. Em paralelo, as imagens do passado narram o encontro inusitado das duas em um hospital psiquiátrico, o uso de drogas, o amor pelo punk e a intensidade da paixão juvenil.

Bye Bye Blondie, circulou principalmente em festivais LGBTQ+ e francófonos, tendo sido premiado no Frameline: San Francisco International LGBTQ Film Festival em 2012 e no Chéries-Chéris em 2011.

Despentes (1969) trabalhou como empregada doméstica, prostituta em “casas de massagem” e peep shows, vendedora numa loja de discos, como jornalista freelancer especializada em rock e crítica de cinema pornô. Entre 2004 e 2005, ela tornou pública sua vida num blog. Nessa época, começou a namorar o filósofo Paul Preciado, com quem ficou até 2014.




23.03.2022
ASAS (1966)

[Krylya]
de Larisa Shepitko
com Maya Bulgakova e Zhanna Bolotova
81 minutos




Depois do Fim da Arte exibe essa semana, no cineclube do Centro Cultural da Diversidade, Asas, de 1966, dirigido pela cineasta ucraniana Larisa Shepitko (1938-1979). Asas, o longa-metragem de estreia da diretora, foi produzido depois que ela se formou, aos 22 anos, no VGIK, renomado Instituto Estatal Russo de Cinematografia, a mais antiga escola de cinema do mundo, fundada por Lev Kuleshov, em 1919, e que teve Sergei Eisenstein como um de seus professores. Larisa Shepitko foi a única mulher a estudar no VGIK naquela época. Mesmo sob o legado histórico de filmes feitos exclusivamente por homens, ela afirmou, em documentário dirigido pelo marido, nunca ter tomado os diretores como modelo, pois sabia que "qualquer tentativa de imitar cineastas homens não passaria de mera derivação".

O drama em preto e branco de 1966 retrata a crise de uma mulher que, após ter sido condecorada como piloto de caça na Segunda Guerra Mundial, teve que ajustar-se à vida doméstica e à nova função como diretora de escola. A câmera de Shepitko, elegante e correta, retrata as ruas e locações de Sebastopol, contrastando os ambientes fechados do cotidiano da protagonista com planos nostálgicos do céu. A cineasta apresenta a desconexão da protagonista com aquilo que a sociedade espera de uma mulher. Nadia é a única protagonista feminina na pequena filmografia de Shepitko, incorporando não só a crise geracional entre mães que lutaram na Guerra e seus filhos, mas também uma reflexão sobre o lugar da mulher na sociedade moderna e sobre a representação dela no cinema.

O estilo de Shepitko em Asas e seu lugar na história do cinema russo alinha-se com a narrativa do filme, oferecendo um retrato de uma ex-stalinista que deve se libertar de sua rigidez. A abordagem de Shepitko não apenas abraça a mudança ideológica na Rússia, mas também nos coloca diante de uma realidade complexa por meio de Nadia, apresentada de uma perspectiva adequada ao Estado e de uma perspectiva subjetiva crítica. Ela é uma estranha em sua própria vida, sempre observada pelos outros, sempre em desacordo com a geração mais jovem, incluindo sua filha e seus alunos. Na primeira cena, Nadia aparece como um corpo fragmentado, medido e catalogado por um alfaiate homem. Em seguida, ela aparece como uma imagem sem voz, enquadrada pela mídia e falando sem falar em nome do Estado. Ela se torna nada mais do que uma foto em um memorial de guerra no museu local de um mundo que a vê exclusivamente de uma perspectiva masculina.

Incorporando ao realismo-naturalismo uma narrativa poética, a ucraniana tornou-se uma das proeminentes figuras da nouvelle vague soviética, junto de Andrei Tarkovski e Kira Muratova, devido ao período do Degelo de Kruschev, resposta direta às limitações impostas aos cidadãos soviéticos durante o Governo de Stalin, marcando o início de um retorno inovador às artes cinematográficas. Controversa, três de seus sete filmes foram censurados e alguns deles nunca foram exibidos no cinema. A imprensa considerou inadequado retratar conflitos entre pais e filhos, por exemplo, banindo Asas na ocasião de seu lançamento, o que iniciou um debate público sobre a diferença de gerações e a imagem de uma heroína de guerra como alguém isolado e perdido.

Os jovens cineastas soviéticos dos anos 1960 procuravam se opor ao “grande estilo” que havia florescido sob o stalinismo, aos dramas luxuosos, musicais floreados e filmes de guerra que celebravam as vitórias ao longo da história russa. Depois da morte de Stalin em 1953, eles procuraram reformular a perspectiva de seu público, virando suas câmeras para a vida cotidiana das pessoas comuns. A mudança não apenas marcou a diferença entre a geração atual e seus pais que viveram sob Stalin, mas se tornou uma bolha na história do cinema russo, já que, quando Leonid Brezhnev assumiu, a produção cinematográfica seria novamente monitorada de perto.

O longa-metragem Ascensão, dirigido por Sheptiko em 1977, foi o segundo filme feito por uma mulher a ganhar um Urso de Ouro no Festival de Berlim. Um ano mais tarde, devido à crescente reputação internacional da cineasta ucraniana, a 28a edição do Festival a convidou a integrar o júri. 

Aos 41 anos, Shepitko morreu em um acidente de carro próximo à cidade de Tver, com quatro membros de sua equipe, visitando uma locação do que parecia ser o mais promissor de seus filmes, intitulado Até a próxima, finalizado em 1981 por seu marido, o também cineasta Elem Klimov.




25.05.2022
O FUNERAL DAS ROSAS (1969)

[Bara no Sōretsu]
de Toshio Matsumoto
com Pitâ, Osamu Ogasawara, Yoshimi Jô
105 minutos




Nesse mês, Depois do Fim da Arte exibirá no cineclube do Centro Cultural da Diversidade Funeral das Rosas (1969), roteirizado e dirigido por Toshio Matsumoto. De maneira surpreendentemente experimental, Matsumoto contextualiza em seu primeiro longa-metragem o Japão de meados dos anos 1960. Funeral das Rosas – cuja forma inovadora desvia do repertório do cinema japonês que o antecede e extravasa limites ficcionais do cinema ­– relata a vida noturna e a efervescência política de Tóquio depois da segunda guerra mundial. Por meio de dispositivos como a entrevista, a captação das ruas movimentadas da capital ou mesmo a exposição do set de filmagem, Matsumoto anarquiza a linearidade prosaica de realizadores como Ozu e Mizoguchi e evidencia as mudanças drásticas do Japão derrotado e norte-americanizado, embaralhando definições de narrativa e documentário.

Os anos de 1968 e 1969, ano de estreia do longa, foram marcados por protestos nas universidades japonesas e pelo movimento de Libertação das Mulheres, interagindo com o ciclo mundial de manifestações estudantis. No cenário japonês, os estudantes se manifestaram inicialmente contra questões práticas e concretas nas universidades, avançando, em seguida, com violência do campus às ruas. Em concomitância, o movimento feminista aclamava a erradicação da domesticação domiciliar, incentivando mulheres ao não-contentamento em ser donas de casa ou mães, e reivindicava o direito de explorarem sua sexualidade sem normas e expectativas patriarcais.

Nesse panorama, Matsumoto transporta os espectadores para a cena LGBT da Tóquio dos anos 1960, com um elenco composto principalmente por amadores, recrutados em clubes underground: Eddie, personagem principal, reinterpreta o mito de Édipo em uma versão queer. Somado à radicalidade e inovação dos dispositivos de filmagem e edição, o elenco diletante evoca o berço de uma contracultura estabelecida em condições urbanas adversas. As cidades japonesas, invadidas pelo imperialismo estadunidense (um golpe rápido e violento contra o protecionismo cultural japonês), exalam a pobreza e prostituição, a efervecência política, a irradiação massiva das imagens televisivas e a introjeção acirrada da cultura de consumo norte-americana.

Toshio Matsumoto (1932-2017) integrou o movimento da New Wave japonesa (Nūberu bāgu), de realizadores desconexos que compartilhavam novos temas e trejeitos de criação para o cinema, renovando a posição social e as condições de produção do cineasta. Lecionou na Universidade de Kyoto e publicou diversos livros de fotografia, até seu falecimento em 2017.

Um marco na Nūberu bāgu,Funeral das rosas, contrasta com a Nouvelle Vague francesa apresentando uma alternativa bizarra para a heteronormatividade rígida que ainda permeava a produção que estava sendo feita na França, seja no âmbito temático quanto no âmbito formal, quando a decadência e a sujeira das ruas torna-se palco cênico para o cinema.



29.06.2022
O EXÉRCITO DAS FRAMBOESAS (2004)

[The Raspberry Reich]
de Bruce LaBruce
com Susanne Sachsse, Daniel Bätscher, Andreas Rupprecht, Dean Monroe
90 minutos




No mês do orgulho LGBTQIAP+, Depois do Fim da Arte apresenta no Cineclube do Centro Cultural da Diversidade, Exército das frutas (2004), do diretor, escritor, artista e fotógrafo canadense Bruce LaBruce. Enquanto planejam o sequestro do filho do banqueiro mais rico da Alemanha, os membros de uma gangue revolucionária – o exército das framboesas – tentam atualizar as noções de revolução a partir da experimentação sexual. Para Gudrun (Susanne Sachsse), a líder do grupo, não haverá revolução sem revolução sexual, e não haverá revolução sexual sem revolução homossexual. Partindo desse princípio, obriga os guerrilheiros a transarem entre si, além de proibir a masturbação e a fidelidade entre eles.

A maior parte do filme se passa em um apartamento, no qual pessoas transam a todo momento. A câmera passeia pela cama, pelas paredes, entra no elevador e acompanha as superfícies em que o sexo acontece, quando não explícito, encoberto por cabeças flutuantes do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, bem como por frases de sua autoria. Ainda como construção da narrativa plástica, letreiros contrarrevolucionários atravessam as cenas e os personagens recitam longas passagens de A Revolução da Vida Cotidiana (1967), de Raoul Vaneigem, membro da Internacional Situacionista entre 1961 e 1970.

Vencedor de dois prêmios no Melbourne Underground Film Festival, Exército das frutas transita entre a artificialidade do cinema de gênero, a comédia – por exemplo, no momento em que o filho do banqueiro é sequestrado –, e o naturalismo de um political porn de arte. Dean Monroe, que interpreta Andreas, é ator pornô e já venceu o Grabby Award – premiação da indústria voltada para filmes adultos gays dos Estados Unidos –, assim como boa parte do elenco, atua em filmes pornográficos. O diretor faz uso do radicalismo sexual, ou melhor, do que ele chamou de terrorist chic, a fim de reavaliar um contexto político.

Não por acaso, a protagonista tem o mesmo nome de Gudrun Ensslin, líder da Facção do Exército Vermelho, organização alemã de extrema esquerda, também conhecida como Grupo Baader-Meinhof. De 1970 a 1998, o movimento de guerrilha urbana identificava-se como comunista e anti-imperialista, engajado na luta armada. O termo Raspberry Reich – título original do filme de LaBruce – foi cunhado por Ensslin para se referir à opressão da sociedade de consumo, sendo Reich uma homenagem ao sexólogo comunista Wilhem Reich e ao Terceiro Reich de Hitler. Com outro nome, A revolução é meu namorado, uma versão "sem cortes" do filme, que incluía cenas eróticas cortadas da versão original, também foi lançada.

Antecipando em quase duas décadas a estética que se popularizaria na internet por meio de memes, GIFs e vídeos infames de TikTok, o filme tensiona os limites entre o desejo revolucionário – que se revela na veneração a revoluções anteriores, nas imagens dos líderes espalhados por toda a casa, na declamação da história da RAF – e a dificuldade de criar modos de vida que não fossem baseados na constituição de uma família, na fidelidade monogâmica e na propriedade privada.

O estilo de LaBruce costuma explorar tópicos extremos e perturbadores, como cenas de fetiche sexual e parafilia, BDSM, estupro coletivo, violência por motivos raciais, fetichismo de amputados, gerontofilia, prostituição masculina e feminina, sexo entre gêmeos, vampiros e zumbis. L.A. Zombie (2010), seu longa-metragem de horror experimental, por exemplo, foi banido de festivais por não conseguir liberação da censura.

Bruce LaBruce estudou cinema na York University em Toronto, escreveu, editou e fotografou para revistas como Vice, Nerve, BlackBook e Index Magazine de Nova York. Ganhou atenção do público com a publicação do fanzine queer punk J.D.s, que ele co-editou. Mais tarde, alegou sentir-se alinhado ao movimento queercore da década de 1980, que, assim como os punks, expressava seu descontentamento com a sociedade.



25.05.2022
FANDO E LIS (1968)

[Fando y Lis]
de Alejandro Jodorowsky
com Sergio Kleiner e Diana Mariscal
93 minutos




Nesta semana, Depois do Fim da Arte exibirá no cineclube do Centro Cultural da Diversidade o filme Fando y Lis, primeiro longa-metragem do diretor chileno Alejandro Jodorowsky, filmado e produzido no México em 1968. Trata-se de uma adaptação ao cinema para a peça teatral homônima do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, celebrado como um dos principais e definitivos nomes do “Teatro do Absurdo”.

Fando empurra sua companheira Lis, que é paralítica, em um carrinho rumo a Tar, cidade mítica onde as pessoas viveriam livres de qualquer sofrimento. A jornada, porém, é um andar em círculo ad infinitum, onde, a cada volta, o casal se depara com os mesmos cenários inóspitos e em ruínas dos quais desejam escapar. Esse voltar ao mesmo ponto também se estende ao espectador, já que a impossibilidade de se chegar a Tar é constantemente declarada.  

Arrabal e Jodorowsky elaboram uma sucessão de encontros que intensificam a comunhão entre símbolos, gestos disruptivos, situações absurdas e ausência de linearidade aristotélica, características que demarcam a parceria artística entre os dois. Junto com Roland Topor, fundaram em 1962 o “Movimento Pânico”, cujo partido estético seria a simultaneidade entre horror e humor para gerar “ataques visuais” como experiência estética, estabelecendo relações entre arte e vida, possibilitando a experimentação formal e a mistura de linguagens, ao absorver influências do dadaísmo e do surrealismo.

Dois anos antes de realizar Fando e Lis, Jodorowsky definiu “pânico” como algo intrínseco a períodos de transição, sendo, em suas palavras, “a anunciação de um nascimento espiritual”, o que permitiria que as pessoas “expandissem seus limites de consciência sobre a existência”. Vale ressaltar que os artistas, mesmo que oriundos de países distintos, integram uma geração marcada pela perda de referências, crise existencial, incomunicabilidade e desolação provocados pela sucessão de guerras na primeira metade do século XX. Tais conflitos exigiam a reformulação da realidade através de uma disrupção dos ideais de “unidade, sentido e beleza” que, naquele contexto, só serviriam para moldar comportamentos e abafar a verve política da arte.

Em “Fando e Lis” Jodorowsky pratica o “pânico” com uma radicalidade estética que teve uma recepção conservadora e brutal no México. A estreia do filme no Festival de Acapulco terminou com uma multidão furiosa tentando linchar o diretor, quando Emílio “Índio” Fernández, um dos mais importantes cineastas da história do México, sacou uma arma da cintura para matar Jodorowsky. O filme, então, foi banido e o festival findou em sua primeira e fatídica edição.

Com o passar dos anos, mesmo que não ocupe o destaque que títulos como “O topo” e “A montanha sagrada” têm na filmografia de Jodorowsky, “Fando e Lis” passou a ser celebrado por seu experimentalismo, inaugurando características posteriormente desenvolvidas pelo diretor, como as relações entre alquimia e tarô na elaboração simbólica das cenas, além da divisão em capítulos, embora tenha sido apenas uma estratégia para burlar, por falta de orçamento, as regras de produção cinematográfica vigentes no México dos anos 60, em que se obrigava a contratação de cem profissionais para a produção de um longa-metragem, uma tática para controlar politicamente as produções. Nesse contexto, “Fando e Lis” foi registrado oficialmente no México como um conjunto de cinco curtas-metragens.

Desde a sua pré-produção, portanto, “Fando e Lis” é um filme experimental, contraventor e subversivo. E para além das características estéticas já comentadas, comuns nas trajetórias de Arrabal e Jodorowsky e em comum entre o Teatro do Absurdo e o Movimento Pânico, cabe propor, aqui, uma relação entre os dois artistas e as personagens Fando e Lis: o desterro. À procura de Tar, o casal deambula sem qualquer referência de origem ou pertencimento; Arrabal, atordoado pela prisão, tortura e desaparecimento do pai militar e defensor da República na Guerra Civil Espanhola, abandona sua terra natal em 1955, como afirma, “por motivos de liberdade”, sendo mais tarde, em 1967, expatriado e condenado à prisão pelo ditador Francisco Franco por conta do teor político de suas criações artísticas. É também pelo desejo de liberdade – a estética – que o chileno Jodorowsky se transfere à Paris para estudar teatro e se vincula ao dramaturgo que estimularia sua estreia na direção de longas. Liberdade, aliás, é um signo explícito no filme, palavra vocalizada em voz off e grafada como epílogo, posta em conversa direta com os espectadores.

Possivelmente, nós, assistindo ao filme na segunda década do século XXI, encontremos na busca por liberdade a atemporalidade dessa obra: afinal, entre as crises sucessivas que demarcam nosso tempo, não estamos, acompanhados de nossas próprias imagens, dando voltas em um desterro de imaginação? Diante dessa retórica, talvez nos reste adentrar na experiência estética de “Fando e Lis” seguindo o voto dado por Arrabal quando um grupo de jovens atores brasileiros escreveu uma carta, em 2015, pedindo autorização para encenar seu texto: “desejo pânico e bênção para trilhar esse caminho”. Bênção, aqui, pode ter uma relação sinonímica com liberdade, sendo, portanto, uma sensação rara (leia-se este termo nos seus sentidos em português e em espanhol), diversa do pânico que é um sentido constante no que as filosofias nos habituaram a entender como existência.

Alejandro Jodorowsky nasceu em Tocopilla, Chile, em 1929. Começou a estudar psicologia e filosofia em Santiago, mas acabou abandonando a faculdade depois de dois anos. Em 1947, fundou sua própria trupe teatral, o Teatro Mímico, e, em 1953 mudou-se para Paris onde estudou com Étienne Decroux e Marcel Marceau. Em 1957, Jodorowsky voltou-se para o cinema, fazendo Les têtes interverties [As cabeças decepadas], uma adaptação de 20 minutos da novela de Thomas Mann. Em 1960, mudou-se para o México e, em 1966, produziu sua primeira história em quadrinhos, Anibal 5.

Elilson



31.08.2022
O SÉTIMO CONTINENTE (1989)

[Der siebente Kontinent]
de Michael Haneke
com Dieter Berner, Birgit Doll, Leni Tanzer
104 minutos




Na próxima quarta-feira, dia 31/08/2022, Depois do Fim da Arte apresenta no Cineclube do Centro Cultural da Diversidade, O sétimo continente (1989), primeiro longa-metragem do diretor austríaco Michael Haneke. Baseado em uma história real, o filme acompanha o enfastioso cotidiano de uma família de classe média austríaca. O casal protagonista segue uma rotina bastante regular e repetitiva, quando começa a preocupar-se com o bem-estar de sua filha única, Eva. Na escola, a garota mente que está cega – talvez sua forma de chamar atenção diante do mundo desencantado e envolto por mercadorias que Haneke constrói. A partir desse ponto de inflexão, a família planeja uma mudança radical e analisa viver na Austrália – destino condensado por uma renitente imagem de praia deserta, que acompanha a narrativa do filme em diferentes momentos. No entanto, durante o trajeto, as três personagens rumarão caminhos um tanto mais sombrios.

O Sétimo Continente apresenta pouquíssimos diálogos e nenhuma música extradiegética. No filme, ações irrelevantes e deslocamentos ínfimos são apresentados numa volta repetitiva que, vertiginosamente, torna-se uma espiral descendente. As mãos dos atores figuram tanto ou mais que seus rostos, como se tal ponto de vista nos aproximasse da família, simultaneamente revestindo-a de impessoalidade. Imagens de produtos, prateleiras e eletrodomésticos permeiam boa parte do filme, dando ritmo ao tom fúnebre e seco da história. A câmera parece acompanhar a ‘vida’ desses objetos que cruzam o cotidiano dos três personagens, atestando o fetichismo da mercadoria enquanto princípio ordenador das subjetividades. O reflexo da televisão se espalha por diversos planos e superfícies, tingindo de azul os rostos neutralizados dos atores. Em seu percurso de mudança, o casal esgota-se. Sua angústia e tédio tomam forma na destruição dos objetos que os circundam. A rotina familiar, orientada pelos fluxos profissionais e pelo trabalho, colapsa paulatinamente. Fora do escritório, o tempo de lazer é igualmente mortífero e burocrático.   

Trata-se de um filme essencialmente político, sem conter, no entanto, pregações ou falas instrumentais. As imagens discursam junto ao som e ao silêncio. O retrato das inúmeras mercadorias, despido de seu revestimento publicitário, soa sufocante. Para tal, Haneke utiliza-se de uma câmera focada, que raramente recua e prefere ver entre detalhes. Ao mesmo tempo, os quadros calculados e firmes transpassam a insipidez do dia-a-dia das personagens. 

O sétimo continente é o primeiro filme da “trilogia da frieza”, junto a O vídeo de Benny (1992) e 71 fragmentos de uma cronologia do acaso (1994). Filho do ator e diretor alemão Fritz Haneke e da atriz austríaca Beatrix von Degenschild, Michael Haneke estreou como diretor aos 47 anos de idade, recebendo por seu primeiro filme o Leopardo de Bronze no festival de Locarno. Antes disso, o diretor formou-se em Psicologia, Filosofia e Teatro pela Universidade de Viena, trabalhou com edição e direção na estação de televisão Südwestfunk e escreveu crítica de cinema. Seus filmes são cirúrgicos. Despojados de sentimentalismo ou recursos próprios do drama burguês, abordam controvérsias sociais de forma devastadora.

Pedro Andrada



29.09.2022
ELEFANTE (1989)

[Elephant]
de Alan Clarke
com Gary Walker, Bill Hamilton, Michael Foyle
39 minutos




Nesse mês, o Depois do Fim da Arte exibirá no cineclube do Centro Cultural da Diversidade Elefante (1989) dirigido por Alan Clarke. No filme, o diretor inglês explora a violência política do conflito separatista na Irlanda do Norte, também chamado de The Troubles, que ocorreu entre 1968 e 1998. De um lado os protestantes e sindicalistas que queriam manter o vínculo com o Reino Unido e do outro, os nacionalistas Católicos e o exército do IRA que reivindicavam a reintegração com a Irlanda e a independência do Reino Unido. O conflito gerou incontáveis protestos, motins, atos de desobediência civil e mais de 3,500 mortes dentre civis, membros das forças armadas britânicas e grupos paramilitares.

O curta-metragem comissionado pela BBC é considerado um marco na carreira do diretor e também em filmes feitos para a televisão durante os anos 1980. Próximo da vídeo-arte, com uma forma atípica de retratar a violência e abrindo mão de uma estrutura mais formal do cinema, Clarke junta matérias encontradas em jornais sobre 18 assassinatos reais que aconteceram em Belfast e monta um filme com exatamente 18 cenas, reencenando cada assassinato. Praticamente sem diálogo, contexto ou explicação, os assassinatos à queima roupa se tornam um exercício de repetição, onde eventualmente nos acostumamos com a brutalidade da condição humana. O título do filme vem de uma citação do escritor Bernard MacLaverty “the elephant in the living room” que traz à tona questões que não queremos discutir ou até mesmo reconhecer, como um elefante enorme no meio da sala de estar.

Assim que uma nova cena se inicia, já sabemos como ela vai terminar e ficamos  num momento de contemplação de cada morte. As imagens são feitas todas com steadicam e tracking shots, onde a câmera persegue o assassino (sempre homens) por trás, rumo a sua próxima vítima. A fotografia fria e imagens cruas são essenciais em retratar tamanha brutalidade e violência, aparentemente sem motivo ou conexão entre as sequências. Dessa forma, o filme não tenta falar sobre quem tem razão: católicos, protestantes, ingleses ou irlandeses. O filme trata sobretudo da repetição da violência e desse ciclo interminável.  

Clarke influenciou uma geração de atores, escritores e diretores como Harmony Korine, Stephen Frears, Paul Greengrass e David Leland, além desse filme em específico ter sido uma influência direta no Elefante de Gus Van Sant, que carrega o mesmo título. Clarke também mudou a forma narrativa de filmes para a televisão e em Agosto desse ano foi realizada uma retrospectiva no BFI Southbank (Londres) chamada Dissent & Disruption: The Complete Alan Clarke. A mostra durou um mês e trouxe o catálogo inteiro dos filmes de Alan Clarke, além de lançar um box que inclui seus filmes para a BBC entre 1969-89, que eram até então muito difíceis de encontrar. Elefante foi o seu último filme, Clarke morreu dois anos depois.

Juliana Frontin



26.10.2022
POCILGA (1969)

[Porcile]
de Pier Paolo Pasolini
com Alberto Lionello, Anne Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud, Marco Ferreri, Ugo Tognazzi
99 minutos




Neste mês, o Depois do Fim da Arte exibirá no cineclube do Centro Cultural da Diversidade Pocilga (1969), filme dirigido por Pier Paolo Pasolini. Pocilga apresenta duas histórias distintas de forma paralela:

Uma se passa sem diálogos, no final da Idade Média em uma paisagem vulcânica (as filmagens foram feitas ao redor do Vulcão Etna, na Sicília), e mostra a trajetória de um homem faminto e errante (Pierre Clémenti) que forma um pequeno bando com assassinos e prisioneiras, todos canibais e que lançam as cabeças decepadas de suas vítimas ao vulcão. O bando tenta sobreviver enquanto escapa da lei – representada pelos soldados e pela Igreja que os persegue. Os planos abertos no cenário árido, a introspecção dos personagens e a marcha dos soldados sobre os montes remetem ao Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, lançado 12 anos antes.

A outra história, verborrágica, é sobre Julian (Jean-Pierre Léaud), um jovem que nem obedece e nem desobedece, é nem conformista e nem revolucionário, e prefere os porcos à sua pretendente Ida (Anne Wiazemsky), uma militante burguesa que representa para Pasolini os estudantes filhos da burguesia que protestavam por causas que não pertenciam a eles. Julian é filho do industrial Herr Klotz (Alberto Lionello), um nostálgico do nazismo fisicamente caracterizado como Hitler que disputa poder político com o também industrial e antigo colega nazista Herdhitze (Ugo Tognazzi). Essa segunda trama se passa na mansão da família Klotz na Alemanha de 1967 (“templo de um avô italianizante”, como coloca Ida em certo momento, ou “recôndita vila italianizante”, como responde Julian), quando o país começava a entrar em recessão após o Milagre do Reno (Wirtschaftswunder – “milagre econômico” da Alemanha Ocidental e da Áustria no pós-guerra).

O filme faz uma crítica à sociedade capitalista que ordena a obediência e sacrifica tanto os que a ela se opõem quanto os sujeitos indiferentes como Julian: “A moral do filme, se ele tem uma, é que a sociedade atual esmaga seus filhos desobedientes, mas igualmente aqueles que se comprazem na ambiguidade”, revelou o diretor a Jean Duflot em entrevista publicada no livro As Últimas Palavras do Herege. Mas Pocilgatece também um elogio à barbárie – não a nazista, mas a primitiva, que para Pasolini tem algo de puro e bom: "Os bárbaros choram. É o homem moderno que pretende ser indigno chorar", afirmou na mesma entrevista. Além de canibalismo, o filme utiliza também de zoofilia como metáfora da condição humana na sociedade de consumo. Entretanto, a selvageria, termo utilizado pelo diretor, não impede o tom cômico dos jogos de câmera e dos diálogos entre os burgueses, assim como a atmosfera erótica que predomina na história dos canibais.

Pocilga é o resultado cinematográfico de duas tragédias escritas por Pasolini para o “teatro da palavra”, um novo teatro manifesto pelo próprio e cuja proposta era nem divertir, nem escandalizar. Entre a escrita das peças (Orgia e Pocilga), sua roteirização em uma única obra e a filmagem desta, a produção levou quatro anos para ser finalizada. Estreou em 31 de agosto de 1969 no XXX Festival de Veneza. Pocilgaé o segundo filme da guinada de Pasolini à um cinema mais denso e conceitual, fase inaugurada por Teorema (1968).

Pier Paolo Pasolini, comunista, cristão e homossexual, foi um cineasta, poeta e escritor italiano. Começou a escrever poesia aos sete anos e se graduou em literatura pela Universidade de Bolonha. Se filiou ao Partido Comunista em 1947 e, em 1949, foi expulso por conta de sua sexualidade. Seus filmes tratam de religião, sexualidade e arcaísmo, sempre críticos à sociedade burguesa, e são considerados ainda hoje controversos. Entre suas obras mais conhecidas estão Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), Decameron (1971) e O Evangelho Segundo São Mateus (1964). Em 2022 se comemora o centenário de vida de Pasolini.

Fernanda Pujol



30.11.2022
A COR DA ROMÃ (1969)

[Sayat Nova]
de Sergei Parajanov
Sofiko Chiaureli, Vilen Galstyan, Spartak Bagashvili, Hovhannes Minasyan
79 minutos




Na próxima quarta-feira, 30 de novembro, o Depois do Fim da Arte apresenta A cor da romã (1969), de Sergei Parajanov (1924-1990) no cineclube do Centro Cultural da Diversidade. O segundo longa-metragem do diretor armênio parte da biografia do poeta conterrâneo Sayat Nova, sem se propor, no entanto, a narrar sua vida. Já na primeira cartela do filme, está dito que o cineasta tentou "recriar o mundo interior do poeta através das trepidações de sua alma, das suas paixões e tormentos, usando amplamente de simbolismos e alegorias próprias à tradição dos poetas-trovadores da Armênia Medieval".

O filme apresenta experimentações rigorosas por meio de planos fixos e, em sua maioria, frontais. Uma imagem substitui a outra incessantemente até que o filme finde sem um único raccord. Os personagens – coloridos – se movem vagarosamente executando gestos curtos e repetitivos enquanto encaram o espectador. Lenta e descontínua, a narrativa pela qual o mundo de Sayat Nova é recriado se parece um sonho: estranho, vagamente incompreensível.

A cor da romã faz lembrar os tableaux vivants das iluminuras da região do Cáucaso. A característica bidimensional da imagem cinematográfica é escancarada por meio de uma composição meticulosa, em que personagens e objetos se distribuem no plano evitando a representação de profundidade. Ainda no esforço de produzir imagens que não sejam confundidas com o mundo, o diretor evidencia os truques da montagem, como outrora fez Meliés com suas aparições e desaparições repentinas.

Utilizando-se da paisagem da Armênia, Geórgia e Azerbaijão como locação, Parajanov conseguiu produzir imagens paradoxais, que são ao mesmo tempo oníricas e históricas.

A primeira versão do filme foi censurada na URSS já que não "refletia" a vida do poeta. Mesmo após a mudança do título, o lançamento de A cor da romã só foi autorizado na Armênia. O estilo de Parajanov, que tanto incomodava o Partido Comunista, não tinha precedentes. De acordo com Mikhail Vartanov, desde Eisenstein, o cinema mundial não via nada tão revolucionário como A cor da romã que, apesar das condições precárias do baixo orçamento, consagraria o diretor pelas inovações estéticas e rupturas narrativas.

Até a década de 80, seus filmes continuaram sendo perseguidos por não se alinharem aos valores do realismo socialista. Esse processo culminou na prisão do diretor sob falsas acusações "de tráfico de ícones e objetos de arte", "propagação de doenças venéreas", "incitação ao suicídio" e "homossexualidade". Voltou a fazer cinema só depois do afrouxamento das políticas soviéticas de controle. Sua obra influenciou diretores como Godard e Francis Ford Coppola, mas também toda uma geração pop, de Madonna a Lady Gaga.

Lara Ovídio